quinta-feira, novembro 30, 2006

2005

os homens que despertam cotovias
navegam em águas verdes
cor de esmeralda brasileira
usam penas de dragão à cintura
como armas de corte e perfuração
protegem os pés com tiras de vidro sintético
os olhos com gelos fluorescentes

correm como chitas nas savanas
e os cabelos ditam-lhes a velocidade
enquanto os corações cantam sons de euforia

depois partem para os locais desconhecidos
do amor expectante

m.f.s.

Sementes

2005

frequentemente cogitava no sentido de cogitar

permitia às baforadas de ideias desconjuntadas
a sua reunião no substracto do pensamento

esperava que um novo filtro as atenuasse e fizesse salientar
os seus relevos
as suas planuras
os fios das suas ruas

por vezes o manto dos desejos fazia encolher a amplitude
das estrururas cogitantes

distraía-se


m.f.s.

2002

Lugares comuns

Algures
entre um olhar de soslaio e um meio sorriso
um rosto fechado uma sombra
de raspão
um gesto fugidio
nessas zonas intermédias do lusco-fusco
das meias tintas
tons neutros
formas indecisas
inocências perversas
aí onde tudo se pressente e nada se toca
vais dizer-me que é possível
transformar o nada em tudo
construir palácios sobre areias movediças
acreditar em impossibilidades sonhadas
saborear a cor dos raios gama
banhar-se no som das tubas
Dir-me-ás que
o céu não é o limite
que mais para além um buraco
negro
no centro da galáxia
espera por nós para nos
reconstruir no universo da utopia
lá onde basta
estender um desejo
dar-lhe asas de tule
e soltá-lo nas rotas
das inomináveis certezas
que nos esperam
desde o dealbar dos tempos

Noémia Sandwoman (m.f.s.)

2004

terça-feira, novembro 28, 2006

2003

Havidas

reconhecer o fim das coisas havidas,
voltar o rosto às cortinas que caem
sobre o presente,
já passado,

abraçar o vazio deixado,
aceitar o futuro ainda não,
esquecer o rasgar das emoções,
os fugazes relâmpagos da memória,

não falar,

não falar,

deixar a cor inundar os olhos fechados
à beira dos mares invisíveis dos
nossos sonhos,
ignorar o apelo,
calar a desarmonia do dia após,

não dormir,

assim,

não dormir até que a alma
esteja limpa
do fim das coisas havidas.

m.f.s.

2004

Virava a cabeça para a direita
inclinava-a um pouco
e ficava a pensar

nuvens ventos

pós fumos luzes

sons

Tirava o robe de cetim esgarçado
e olhava o reflexo
cor de rosa no espelho

nuvens ventos pós

fumos luzes

sons

Não dormia
o chá na mesa
ao lado
o pão sem manteiga
os cabelos em movimentos pendulares

alfinetes

línguas lambendo os ombros

sons

luzes

holly night

amantes que se devoram
à mesa

fumos labaredas

ventos

levo-te para casa
talvez haja
uma guerra
ainda não me fazes falta
abro o coração
para que se esvazie

ondas

luzes

pós

miragens trémulas
nos horizontes amarelos
os ciprestes
palácios das tempestades

fogos

nuvens

nevoeiros

ventos

o deserto é o mar
interior
feito de ouro velho
e relâmpagos

m.f.s.

2005

artefactos luzidios no campo de malmequeres
transportam consigo o tigre sem dono
o magnífico animal que nos fita expectante

caminhando para nós vem
silencioso

m.f.s.


os que dormem devem acordar quando a mulher lavar os vidros
das gaiolas

devem os filhos lavar as mãos para tratar das aves

deve o marido lavar os recipientes da comida e da água

devem as aves permitir que tratem delas sem fugir de suas prisões

e cantar

não devem as aves agitar-se quando as gaiolas são postas na varanda

devem as crianças animar as aves tocando xilofone e harmónicas

deve a mãe recolher as gaiolas ao entardecer assegurando-se de que as aves
estão satisfeitas

devem as aves mostrar a sua gratidão por tanto desvelo
desistindo de tentar escapar-se para o mudo terrível

lá fora

m.f.s.


quero naufragar à entrada do porto de abrigo
quando as ondas invadirem as estradas em tsunami enraivecido
e o meu corpo se deixar embalar na sua fatal canção

quero dar à costa no dorso de um manso tritão
vestida de algas e corais do mar vermelho
quero ter o cabelo das mortíferas sereias de Ulisses

quero dormir numa nuvem mergulhada no mar oceano

m.f.s.

segunda-feira, novembro 27, 2006

Escrito



os olhos que vêem a noite nos pântanos enganadores
escolhem a melancolia como expressão
receiam os limos que prendem os corpos
aos fundos sem fundo das águas perturbadas
e perturbadoras

os olhos que trespassam as sombras fugidias
seguem os traços dos que vivem escondidos
nos corredores de terra escura
daqueles que desconhecem a luz cegante
porque são cegos

os olhos cuja cor se infiltrou nos recônditos
das trevas alcandoradas entre os céus sem estrelas
recolhem todas as imagens pintadas
por aqueles que sofrem de amor
pelo amor

m.f.s.

Escrito

escrevo em meandros
para que a minha alma
não se desvele
para que só os espíritos
condenados à vagabundagem
possam entender os meus
desenhos de silêncios
despedaçados em estilhaços
de matéria negra
caídos na voracidade
das galáxias canibais

ergo labirintos de palavras
sem entradas à vista
sem minotauros
nem ariadnes
nem qualquer herói
voador

por vezes derrubo as muralhas
amontoo os pensamentos incompletos
afasto os restos de palavras
e permito que o horizonte
nos surpreenda
no seu esplendor

m.f.s.

sábado, novembro 25, 2006

uma chuva de vozes contra
as palavras no
canto do ostracismo

um choro mudo nas costas
da donzela

os braços que se flectem como
arietes defensivos

as vozes
em névoas mutantes sobre
os campos de líquenes

o centauro que se levanta com
a ferida no flanco

a donzela corre
corre a favor do vento

tarântulas deixam rastos
de mortandade
nos entrelaçados
mais ou menos bucólicos

dos tecidos epiteliais

o vento enrola as vestes da donzela
delas faz asas incandescentes
afugenta os aracnídios

leva-a para longe do exílio
transporta a sua imagem desfeita

em águas voadoras

m.f.s.
os gémeos da lua cheia caminhavam as mãos dadas
brilhos nos fios metálicos dos cabelos

inexorável o destino calcetava-lhes os caminhos
amuralhava-lhes os céus de ventos redondos

não havia vidas fervilhantes sob os seus pés
só nos rostos de porcelana colorida

restavam vestígios de sorrisos e de lágrimas
na certeza das incertezas que lhes cobriam a alma

m.f.s.

sexta-feira, novembro 24, 2006

Escritos antigos, outra vez

enrolam-se nas suas roupas incandescentes
as mãos em esgares de raiva mal guardada
lançam ódios em palavras aguçadas
rosnam como lobos esfaimados

são os descentrados nas paisagens das palavras

são os donos das certezas esfarrapadas
os imaturos da vida ociosa
os emparedados nas suas vaidades
os que se cegam nos seus orgulhos ocos

o cilindro do tempo virá imparável
esmagará as loucas impotências
traçará nos caminhos desertificados
a vergonha do nada

como o espelho vazio

m.f.s.


em cima dos ventos que arrastam as vozes delirantes
dos perdidos em si
sob a sua leve textura de enovelados remoinhos zumbidores
para lá dos limites da inocência
as catadupas de negritudes embebem as almas
em nadas fluorescentes
de anúncios de filmes americanos

os planetas desconhecidos atacam os horizontes dourados
as areias erguem-se em finos véus
envolvem os viajantes desprevenidos
enfeitam-nos de resistentes escorpiões dos desertos

as vozes extinguem-se sob os mantos de neblinas
à espera dos seres alados que as tomarão para si

m.f.s.


deixa morrer o meu corpo deitado na duna onde o vento desenha espirais
deixa que as libélulas dancem sob o fundo azul de verão
que os meus olhos ceguem com o brilho das estrelas
que a espuma mansa do mar nocturno cubra os meus pés
enregelados

que o sol ao nascer não me veja nunca mais nesta paisagem

sobre a minha campa faz nascer alegres trevos de tenro verde
e flores amarelas
como se a areia mudasse a sua natureza e os trevos
se aproveitassem disso
como se houvesse um perpétuo véu de tule bordado a prata
estendido de mim ao horizonte da lua

espera pelo meu regresso montada na brisa matinal

m.f.s.

as vozes que se espraiam na paisagem lembram a minha condição
de humana fraqueza
nas correrias dos dias iguais
nos haustos do ar rarefeito
nas altitudes dos sonhos

as vozes planeiam desfazer-me em rugas de tempos alijados
nas planuras sem fim
nas arenosas colinas
nos entardeceres vívidos das memórias
emergentes

as vozes rasgam os tecidos das ternuras avidamente guardadas
em desconhecidos recipientes
onde se vão buscar as energias
impulsionadoras da resistência à loucura
dos resquícios do amor

as vozes não podem não conseguem apagar o lado divino
que me sustem
na universalidade
da minha humana fraqueza inscrita no destino
das harmonias infinitas

as vozes submergem
mudas

m.f.s.

Gonçalo Byrne no CCB



Escritos já antigos

nas melancólicas entrelinhas das conversas inaudíveis
cabe o universo do silêncio
nos insonoros suspiros dos heróis abandonados

sangues que secam em recipientes mortos de pavores
armazenados camada sobre camada até à última instância
lonjuras que se adivinham nos desertos imaginados

m.f.s.


há rios que nos perseguem pelas ruas pelas estradas
pelas vielas
rios insidiosos que arrastam consigo as nossas temperanças
nos deixam de coração exaurido
entre os limos das dores de viver

há rios que nos limpam os destroços das tempestades
vivenciais
que nos trilham caminhos de lama
à espera do sol do deserto
rios que nos lançam em perfumadas cataratas
junto ao mar sem sargaços

há rios como mares que inundam as terras dos nossos jardins
os sobrados das nossas casas sobranceiras às praias
de fulgentes areias
rios que não nos dão o tempo de dizer adeus
às ténues nuvens do entardecer

m.f.s.


fundou uma ilha num lago montanhoso
para finalizar o tempo da passagem
rodeou-se de nuvens
espreitou a chegada dos meteoros
e compôs uns sons a que chamou
sons

tentou descobrir o padrão da formação das ondas
junto ao pequeno cais do seu exílio
e concluiu que era misterioso
o padrão comportava-se como
um alienígena destroçado pela lonjura do lar

deixou que o olhar se fechasse nas divagações outonais
e a poalha das flores ainda inexistentes
encheu-lhe o corpo de véus perfumados

m.f.s.

quinta-feira, novembro 23, 2006

Gravuras

bem podes morrer no meu colo
como a criança que nasceu agora e
se embala
podes desejar que te afague os cabelos
como a mulher que ama e
te lê

conseguirei ver os teus pensamentos como néons
na abóbada escura
da noite que se impacienta
à  espera do desenlace
desta tragi-comédia

poderemos ficar estáticos deitados
no pó
como os mortos de Pompeia
antes de os roubarem
aos seus túmulos
de lava e de cinzas

o cenório vai-se esboroando e
nada mais poderemos

m.f.s.
na hora escondida dos últimos berços tilintam as campainhas
pelos campos
rosnam os lobos desesperados sem presas sem lua
sem parceiras
ricanam os corvos de ferro nos candeeiros municipais

corpos desmanchados em embates rodoviários
despejam as últimas gotas vermelhas
ouve-se o caminhar das raízes e as borboletas nocturnas
tentam furar as lâmpadas acesas

os domingos atardam-se para os encapotados
às portas eclesiásticas
nas lapelas as jovens idosas colocam selos a troco de
qualquer coisa na fenda da caixa

as castanhas soam
a pele esbranquiçada
o odor perfurante


m.f.s.

Prova final

este maná regozija os espíritos esvaziados
de sentido
por ele nos deixamos
recobrir
lavar
alimentar

desenha-se em estruturas cheias de suaves
meandros
de violentas metáforas
cravando em nós o êxtase

estende-se em espaços exclusivos
de respirações perfumadas
inventa ritmos musicais
rasgar de vidros
cintilações que cegam

por ele descobrimos os diversos paraísos
sem entraves

por ele reconhecemos que estamos vivos
nos sonhos

chamam-lhe poesia


m.f.s.

quarta-feira, novembro 22, 2006

mulheres

as mulheres redondas esperam os seus maridos

os homens solitários não têm mulheres redondas nem cúbicas

os fios de cabelos que unem os homens às mulheres resistem mais que fios de seda

arrancam as rendas dos vestidos de noivado e fogem pelas lezírias
as mulheres mal amadas

transportando em bandeira os véus brancos ora enegrecidos pela vida
de desalento e violência e as cinzas das lareiras desprotegidas

com mãos de árvores no inverno
as mulheres envelhecidas tocam cornetas de final de filme


m.f.s.

vens devagar

vens devagar como a sombra de um pássaro tranquilo
nos olhos de jade os relâmpagos de verão
na boca a beleza suave dos sorrisos dos anjos
nas mãos macias o coração de cálido rubi

vens invisível mal aflorando o solo sob os teus pés
nas tuas costas estremecem as asas que a morte te deu
adivinha-se o brilho que te define
e enebria os sedentos de todas as esperanças

m. f. s.

Sombras

num canto desarrumado da minha mente
uma sombra se esgueira
um vento se desenrola até às janelas fechadas
as poeiras inquietam-se em pequenos remoinhos
abrem-se gavetas cheias de nadas incolores

a sombra espreita sempre
por vezes afoita-se a dançar em volutas
como uma longa
tira de escuro papel
flexível
manobrada pelos ventos
de microclimas

tentei rasgar a sombra um dia
com os punhais dos meus olhos
a sombra multiplicou-se em inúmeras
partículas
irizadas
formas coloridas encheram as gavetas
ainda abertas


m.f.s.

segunda-feira, novembro 20, 2006

Escritos




as laranjas cobrem-se de bolor nas fruteiras silenciadas
o pó almofada mansamente os objectos
a luz povoa-se de minúsculas partículas
os fantasmas repousam calmamente nos sofás


m.f.s.


corre o linho pelas minhas mãos de seda
despenham-se as pérolas pelos rostos inertes
não se sabe do fotão fugidio
que se divide e não divide
que está aqui e ali

as mãos desistem do desenho
dos espíritos furtivos

m.f.s.


descabelados os invernos rosnam ventanias
gelam os gestos gentis das silhuetas
embranquecem os dorsos das colinas
entram nos ossos mal protegidos

m.f.s.


gosto do silêncio povoado

povoado de subtis esfumados
o silêncio que nos ouve
e nos devolve o eco de nós
subtilmente

m.f.s.


o lavar das esperanças nas águas apressadas dos rios
em majestosos filamentos ondulados
leva consigo os pormenores que encantam
os espíritos avarentos da beleza em si escondida

m.f.s.

terça-feira, novembro 14, 2006

não há respostas milimétricas
nas urbanidades desertas

foram-se
fugiram

recolheram-se em si mesmos
os habitantes dos vazios

m.f.s.
o cabelo cansou-se empalideceu
a pele lamenta os caminhos que a percorrem
o espírito não dá por nada
liberta-se

agora sou

m.f.s.
tenho a minha alma ao colo adormecida

vou sair por aquela porta que leva aos campos amarelos
vou roubar os corvos a Van Gogh em troca
desta alma que não acorda

habitarei depois os girassois pintados
na minha parede


m.f.s.

quinta-feira, novembro 09, 2006

à superfície do fogo a respiração dos equilíbrios
a frágil ironia dos contrários os espaços cheios de vácuo
os grafismos que se soltam dos murmúrios das plantas
rasteiras à beira-mar

no coração do lume as palpitações das águs presas
os cordões umbilicais que se entrançam enegrecem
as vísceras que escutam Bach cantam os coros voláteis
rompem-se em partículas não observáveis

nas almas reluzentes dos nados-mortos deitados sobre
véus de noivas dilacerados tingidos de invisivilidade
as portas intransponíveis dos outros universos
que de longe nos acenam improbabilidades poéticas

m.f..s.

retorno a ti o corpo sem substância o corpo sem corpo
neve derretida nas covas da pele rochosa de montanhas sem idade
retorno um esboço de um esboço à espera do vigor do traço criativo

m.f.s.


o ladrão que se aproximava tinha o rosto branco como os mascarados de veneza
nas fendas dos olhos havia o negrume que cobre as noites do outro lado da lua

não tinha forma a sua alma de transgressor que procura o próprio rasto
o rutilar das mãos cegava os que o seguiam pelas veredas dos rios

o movimento dos seus pensamentos cravava rotas impossíveis
guiava a sua natureza quântica pelas presenças eternas e omnipresentes

mudava o seu destino e o de todas as outras fugidias representações
repercutia-se pelos diversos níveis da existência em ondas infinitas

m.f.s.


jardim suspenso como a ilha de Swift
habitado como as colmeias
desenhado a carvão no cérebro do criador

cheio de brisas valsantes e musicais
candeeiros descendo das nuvens
corpos velhos de espíritos novos
nas relvas esmeráldicas

o chilrear de todas as crias
vogando no vazio dos átomos
presentes ao mesmo tempo
em todo o lado
ligados pela existência

jardim de sangue
jardim de carne
jardim

m.f.s.

fugiste com lama nos pés
catadupas de estrelas em teus olhos
voando pelo espaço arrastadas
pelo vento que te roça o rosto
saltaste os abismos entre as montanhas
arrancaste as raízes que te prendiam
ao pântano

m.f.s.


do fundo do oceano brotam as ilhas

em grandes haustos arranham as nuvens
arrumam-se
vestem-se de verdes
enfeitam-se de asas bicos patas
grasnidos semeiam areias de
ouros rubis...diamantes

à noite murmuram com o oceano
os sombreados rugidos das águas

m.f.s.


antes de se despedirem soltam imagens de transparências
como as fotografias de luzes arrastadas
olham para um vácuo privado entre duas galáxias
balançam os corpos lentamente como sonhos que se alongam

afastam-se do parceiro de uma estação
erguem os pescoços fitam as neblinas
gargarejam sonoridades jazzísticas
imobilizam-se como se rezassem

levantam voo para os pântanos do norte
em nuvens de asas esvoaçantes

m.f.s.