domingo, novembro 23, 2008

velhos






INVOCAÇÃO


Ó velhos, vós que como os gatos vêdes no escuro
o que as crianças escondem, a distância
por dentro do silêncio, dai-me hoje
lembranças da doçura das manhãs de Julho
e dos vivos crespúsculos de Agosto.

Velhos, divinos velhos, como esquecer-vos?
E às vossas manhãs curtidas nas pedras dos rios
nas noites sinceras de luar?
Que sois cautos nos afectos ao tempo presente
e audaciosos no modo como interpelais fantasmas
numa cisma de amor, numa recriminação,
há muito o aprendi.
E sei que por detrás das vossas humildes máscaras
guardais ainda o segredo das rasteiras ao destino,
do lançar pedras contra os vidros do desalento.

Velhos, quem sois, onde estais? Porque vos escondeis?
Avançai, não temais o néon da incompreensão,
avançai por aqui, até ao proscénio do poema
senhora hortaliceira, senhor tanoeiro,
honrada leiteira, orgulhoso picheleiro;
funileiro e homem de contas
e, tu, ó habitante da mansarda,
entre os sós, poeta romântico.
Todos vós outrora fostes mui respeitados
e se agora, à distância de um postigo,
apenas criais laços com gatos,
pardais, nuvens e morreis pela calada,
tal não é verdadeiramente culpa vossa.

Por vezes, julgais ter errado todos os propósitos
de amor, com a excepção de um cão, um neto
ou um amor enquistado na memória;
qual o grau de verdade nisso não o sei.
Seja como for, este outro convite vos faço:
vinde hoje comigo fazer um carro de rolamentos,
pegar na gancheta, empurrar o arco, rua abaixo;
perscrutar as macieiras e as mãos da mãe
penteando o cabelo.

Como eu, muitos de vós, madrugais
para esperar o céu, um sereno fio de palavras,
a chegada do verão à praia da infância,
e aí nos rendermos ao culto de respirar
junto às rochas o iodo de deus.
Enquanto outros o fazem ao modo vareiro,
dando de comer a um periquito,
rejubilando com o caminho
que ainda têm para trás.

Ladinos, ó como sois ladinos, a reconhecer
a contrafacção dos risos dos netos,
que ainda assim cobris de lambarices e mesadas.
Velhos, soberanos escorraçados da beleza,
ouço-vos, falai comigo, ó meus amigos do coraçàlo,
pois sois peritos, mestres,
do meu país a riqueza inestimável.

Jorge Gomes Miranda
VELHOS
Teatro de Vila Real
2008


Alegre é o olhar e o sorriso
dos velhos
quando as suas mãos ainda conseguem voar
para a construção dos jogos da vida
ou quando se abeiram dos jardins e do rio
e ali permanecem
distantes e quietos
entre as árvores e os pássaros

António Cardoso Pinto
Ou Mundo futuro do tempo...
A Lua Dos Astronautas Não É A Minha Lua
Gradiva
1999


há nos olhos dos velhos hirtos
de sorriso malicioso
nuvens ao redor das pupilas

manchas castanhas
plantam-se-lhes na pele
enrugada e macia

a pele dos velhos é suave
como seda fina amarfanhada
e cheira às cores do infinito

m.f.s.


Velhos

Morrem de olhos abertos,
lançando as últimas faíscas sobre as montanhas
abrem bocas enormes de peixes sem ar
correm-lhes os cabelos pelas faces espantadas
pequenos regatos sulcam a pele rugosa dos rostos
as mãos encarquilham-se em curvas mal desenhadas
cheiram a rosas murchas sobre as camas
nenhuma cor lhes pinta a roupa
despedem-se a preto e branco

m.f.s.

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