quinta-feira, agosto 24, 2006

vários

já só resta uma silhueta
alguns farrapos de histórias
fios de vidas sem passado

as veredas dos campos
enchem-se de ectoplasmas
azulados

uma ou outra flor enegrece as corolas
as sombras desfazem-se em fumos
não se ouvem os relâmpagos

m.f.s.


se tens memória sabes que há outras paisagens
noutros espaços
sabes que se perdeu a inocência nos gemidos
dos anjos expulsos

lembrar-te-ás de outras cores nas silhuetas
contra os vidros estilhaçados
das fábricas abandonadas

não perseguirás sombras que sabes perdidas
para sempre
no gume das facas ponteagudas

não quererás guardar memórias arrefecidas
nos gelos dos planetas que te povoam
o universo pessoal

e intransmissível


m.f.s.


partirás também tu partirás
fugirás pelo canto do olho
sem deixar sombra

outros ares te limparão os olhos
as searas já estarão secas
quando por elas passares

tu partirás invisível
como um suspiro
silencioso
como um harpejo


m.f.s.



serei um dia a pedra precária na falésia
formada na fúria dos ventos marinhos
nos estremeções da terra inquieta

serei grão de areia nos grãos de areia dos oceanos
gelo no granizo extemporâneo sobre as aldeias do interior
talvez vento cantante sobre as cabeças das
crianças assustadas

serei um fio de cabelo que desenha grafismos
sobre os papeis das secretárias
uma folha acabada de cair em pleno verão

serei o indizível presságio no coração
dos loucos de belos olhos garras nas mãos
facas nos dentes de vampiros


m.f.s.

quarta-feira, agosto 23, 2006

não entendo

não entendo a rosa na sua altivez de flor armadilhada
melancolia camuflada em vestes de veludo oloroso

não entendo a voracidade das suas garras as serrilhas
do seu dorso de asas dentadas e verdes...verdes

não entendo porque morres tão cedo rosa de todos os sois
perfumada de desencantos

m.f.s.

sábado, agosto 12, 2006

As noivas de Maio

as noivas de maio correm pelas campinas ainda verdes
arrastando longas nuvens de véus
os ramos de flores brancas que seguram nas mãos lívidas
amarelecem e secam silenciosamente

as libélulas seguem-nas em delírios valsantes
os cucos assustam-se e voam para outros ninhos

nos degraus das escadas nas igrejas abandonadas
os noivos baixam os olhos em íntimo desgosto
desmembram os ramos de laranjeira das lapelas
desvanecem-se lentamente no cenário indiferente

m.f.s.

as mulheres

as mulheres decepam as macieiras em rituais de revitalização
os ramos choram a perda das mães deixam-se levar para as fogueiras do próximo inverno
estalam no calor das lareiras

as mulheres puxam os lenços para a frente dos olhos
espreitam as frestas solares nos céus de cinza
matam-se em milharais no sol a pino

os coelhos farejam as coelhas no cio saltam-lhes para cima e invadem a austrália
há cães com lamentos prolongados contra os horizontes de luzes nocturnas
perderam a identidade em ancestrais evoluções e sentem saudades

homens pelos campos perdidos na busca de suas sombras lançam surdas tristezas

m.f.s.

as meninas deusas

as meninas deusas de corações vermelhos
têm espinhos
e facas aguçadas nos regaços
usam coroas de flores de cera e empalidecem
quando julgam ver o amor à espreita
olham de revés as mulheres caladas
cravam as unhas nas orelhas dos que ouvem sinfonias
riem como pássaros libertos ao cair dos luares estratégicos

as meninas deusas sacodem as saias molhadas das águas donde nasceram
erguem os queixos altivos tecem sedosas teias
e agarram os homens-homens que as esperam
deseperadamente

m.f.s.

sexta-feira, agosto 11, 2006

presenças

solenes presençasas atrás dos ombros
companhias imponderáveis no cenário

nadas nadas aroma de mim distraída de mim
sombras e luzes nos horizontes enigmáticos

aroma de ti reflexo de mim
não encontro a raiz
espirais de vozes dedos de fumo aromas

linhas linhas
linhas

m.f.s.

houve uma infância

houve uma infância

lembram-se as avós das fadas dos recantos
iluminados em sótãos imaginados
falam as avós das visões dos mares internos em remoinho
das nuvens baixas que molham os rostos das crianças
das flores que se fanam antes de abrirem as corolas

dos pássaros palradores nos ramos tardios dos carvalhos

dos pavões e dos seus gritos premonitórios

recordam as avós os natais ensombrados pelos fantasmas às janelas
as procissões cheias de açúcar nos tabuleiros das oferendas
os naperons de papel sabiamente recortado

choram baixinho as avós pelas asas que perderam
nas páscoas de giestas e de pombos
contra o cetim roxo

m.f.s

quinta-feira, agosto 10, 2006

na realidade

na realidade abrasiva dos dias baços
os murmúrios das fontes escondidas
envolvem os corpos
soam como gritos despedaçantes
das carnes
arranham as paredes de marfim
dos espaços claustrofóbicos

m.f.s.

não sonho

não sonho o desfazer das nuvens o corropio dos insectos os sons das madrugadas
não tenho no armário onde escondo os lírios roxos dos campos do sul a
lupa que aumenta as dores dos anjos sem asas e sem reflexos nos espelhos

nãoo prevejo o ataque dos vampiros desesperados a oclusão da luz nos olhos enevoados
a chuva após os ritos sacrificiais das virgens extasiadas
não vislumbro o altar em chamas na montanha lunar os olhos dos animais perseguidos
nos bosques dos centauros

sonho que não sonho

m.f.s.

eu te vejo

eu que te vejo ao meio-dia sob o sol de agosto
persigo a tua sombra mínima sobre as rochas em fogo

eu que te invento em cores pálidas na planície
capto o teu pensamento a quatro dimensões

preso no futuro te vejo abandonado
tu a quem o destino roubou a alma o corpo a essência

sonho-te em transparências de rarefeitos ares
a cavalo no vento do deserto incomensurável

na palma da minha mão ainda tenho as cinzas
da paisagem por ti desenhada no meu peito

m.f.s.

Remoto

remoto era o caminho
minha ilusão

tortuoso era

o que queres dizer
não dizes meu
sofrimento

vazio estás
nesta paisagem
vazio és

vazia me deixas
minha alma
parada aqui

m.f.s.

Amuleto

guardei o amuleto junto dos lírios
na gaveta escondida
deitei-me de olhos nos cometas
as brisas afagando os meus cabelos

deixei cair as imagens que me deste
enquanto éramos viajantes
nas dimensões desconhecidas
- sou eu disseste antes de partir

de lí­rio no peito plantado por mim
o amuleto abandonado na minha mão
fios de prata nos cabelos
veredas no rosto entristecido

caem gotas premonitórias
no interior de mim sentada
na minha sombra nocturna

sorrio não sei porquê

m.f.s.

Cantilena

cantilena para adormecer

de casa de meus pais
me levaram
me levaram na madrugada
da casa de meus pais

sonhava que era um sonho
como uma história
um sonho sonhado
na madrugada

quis acordar não podia
o sonho me enredava
nas suas teias de aço
em noite aziaga

para casa de meus pais
me transportaram
em noite de plena lua
e eu sonhava

acordar não podia
acordar não pude
fiquei presa na lua
da madrugada

m.f.s.