quinta-feira, novembro 23, 2006

na hora escondida dos últimos berços tilintam as campainhas
pelos campos
rosnam os lobos desesperados sem presas sem lua
sem parceiras
ricanam os corvos de ferro nos candeeiros municipais

corpos desmanchados em embates rodoviários
despejam as últimas gotas vermelhas
ouve-se o caminhar das raízes e as borboletas nocturnas
tentam furar as lâmpadas acesas

os domingos atardam-se para os encapotados
às portas eclesiásticas
nas lapelas as jovens idosas colocam selos a troco de
qualquer coisa na fenda da caixa

as castanhas soam
a pele esbranquiçada
o odor perfurante


m.f.s.

Prova final

este maná regozija os espíritos esvaziados
de sentido
por ele nos deixamos
recobrir
lavar
alimentar

desenha-se em estruturas cheias de suaves
meandros
de violentas metáforas
cravando em nós o êxtase

estende-se em espaços exclusivos
de respirações perfumadas
inventa ritmos musicais
rasgar de vidros
cintilações que cegam

por ele descobrimos os diversos paraísos
sem entraves

por ele reconhecemos que estamos vivos
nos sonhos

chamam-lhe poesia


m.f.s.

quarta-feira, novembro 22, 2006

mulheres

as mulheres redondas esperam os seus maridos

os homens solitários não têm mulheres redondas nem cúbicas

os fios de cabelos que unem os homens às mulheres resistem mais que fios de seda

arrancam as rendas dos vestidos de noivado e fogem pelas lezírias
as mulheres mal amadas

transportando em bandeira os véus brancos ora enegrecidos pela vida
de desalento e violência e as cinzas das lareiras desprotegidas

com mãos de árvores no inverno
as mulheres envelhecidas tocam cornetas de final de filme


m.f.s.

vens devagar

vens devagar como a sombra de um pássaro tranquilo
nos olhos de jade os relâmpagos de verão
na boca a beleza suave dos sorrisos dos anjos
nas mãos macias o coração de cálido rubi

vens invisível mal aflorando o solo sob os teus pés
nas tuas costas estremecem as asas que a morte te deu
adivinha-se o brilho que te define
e enebria os sedentos de todas as esperanças

m. f. s.

Sombras

num canto desarrumado da minha mente
uma sombra se esgueira
um vento se desenrola até às janelas fechadas
as poeiras inquietam-se em pequenos remoinhos
abrem-se gavetas cheias de nadas incolores

a sombra espreita sempre
por vezes afoita-se a dançar em volutas
como uma longa
tira de escuro papel
flexível
manobrada pelos ventos
de microclimas

tentei rasgar a sombra um dia
com os punhais dos meus olhos
a sombra multiplicou-se em inúmeras
partículas
irizadas
formas coloridas encheram as gavetas
ainda abertas


m.f.s.

segunda-feira, novembro 20, 2006

Escritos




as laranjas cobrem-se de bolor nas fruteiras silenciadas
o pó almofada mansamente os objectos
a luz povoa-se de minúsculas partículas
os fantasmas repousam calmamente nos sofás


m.f.s.


corre o linho pelas minhas mãos de seda
despenham-se as pérolas pelos rostos inertes
não se sabe do fotão fugidio
que se divide e não divide
que está aqui e ali

as mãos desistem do desenho
dos espíritos furtivos

m.f.s.


descabelados os invernos rosnam ventanias
gelam os gestos gentis das silhuetas
embranquecem os dorsos das colinas
entram nos ossos mal protegidos

m.f.s.


gosto do silêncio povoado

povoado de subtis esfumados
o silêncio que nos ouve
e nos devolve o eco de nós
subtilmente

m.f.s.


o lavar das esperanças nas águas apressadas dos rios
em majestosos filamentos ondulados
leva consigo os pormenores que encantam
os espíritos avarentos da beleza em si escondida

m.f.s.

terça-feira, novembro 14, 2006

não há respostas milimétricas
nas urbanidades desertas

foram-se
fugiram

recolheram-se em si mesmos
os habitantes dos vazios

m.f.s.
o cabelo cansou-se empalideceu
a pele lamenta os caminhos que a percorrem
o espírito não dá por nada
liberta-se

agora sou

m.f.s.
tenho a minha alma ao colo adormecida

vou sair por aquela porta que leva aos campos amarelos
vou roubar os corvos a Van Gogh em troca
desta alma que não acorda

habitarei depois os girassois pintados
na minha parede


m.f.s.

quinta-feira, novembro 09, 2006

à superfície do fogo a respiração dos equilíbrios
a frágil ironia dos contrários os espaços cheios de vácuo
os grafismos que se soltam dos murmúrios das plantas
rasteiras à beira-mar

no coração do lume as palpitações das águs presas
os cordões umbilicais que se entrançam enegrecem
as vísceras que escutam Bach cantam os coros voláteis
rompem-se em partículas não observáveis

nas almas reluzentes dos nados-mortos deitados sobre
véus de noivas dilacerados tingidos de invisivilidade
as portas intransponíveis dos outros universos
que de longe nos acenam improbabilidades poéticas

m.f..s.

retorno a ti o corpo sem substância o corpo sem corpo
neve derretida nas covas da pele rochosa de montanhas sem idade
retorno um esboço de um esboço à espera do vigor do traço criativo

m.f.s.


o ladrão que se aproximava tinha o rosto branco como os mascarados de veneza
nas fendas dos olhos havia o negrume que cobre as noites do outro lado da lua

não tinha forma a sua alma de transgressor que procura o próprio rasto
o rutilar das mãos cegava os que o seguiam pelas veredas dos rios

o movimento dos seus pensamentos cravava rotas impossíveis
guiava a sua natureza quântica pelas presenças eternas e omnipresentes

mudava o seu destino e o de todas as outras fugidias representações
repercutia-se pelos diversos níveis da existência em ondas infinitas

m.f.s.


jardim suspenso como a ilha de Swift
habitado como as colmeias
desenhado a carvão no cérebro do criador

cheio de brisas valsantes e musicais
candeeiros descendo das nuvens
corpos velhos de espíritos novos
nas relvas esmeráldicas

o chilrear de todas as crias
vogando no vazio dos átomos
presentes ao mesmo tempo
em todo o lado
ligados pela existência

jardim de sangue
jardim de carne
jardim

m.f.s.

fugiste com lama nos pés
catadupas de estrelas em teus olhos
voando pelo espaço arrastadas
pelo vento que te roça o rosto
saltaste os abismos entre as montanhas
arrancaste as raízes que te prendiam
ao pântano

m.f.s.


do fundo do oceano brotam as ilhas

em grandes haustos arranham as nuvens
arrumam-se
vestem-se de verdes
enfeitam-se de asas bicos patas
grasnidos semeiam areias de
ouros rubis...diamantes

à noite murmuram com o oceano
os sombreados rugidos das águas

m.f.s.


antes de se despedirem soltam imagens de transparências
como as fotografias de luzes arrastadas
olham para um vácuo privado entre duas galáxias
balançam os corpos lentamente como sonhos que se alongam

afastam-se do parceiro de uma estação
erguem os pescoços fitam as neblinas
gargarejam sonoridades jazzísticas
imobilizam-se como se rezassem

levantam voo para os pântanos do norte
em nuvens de asas esvoaçantes

m.f.s.

quinta-feira, outubro 26, 2006

Escrito

as mulheres transviadas olham atentamente
as unhas quebradas
suspiram intimamente por elegâncias brejeiras
espreitam as janelas da rua da frente
olham ansiosas o telemóvel sobre a cama

qualquer campainha nas portas vizinhas
as sobressaltam
passeiam impacientes sobre os tapetes puidos
falam sozinhas utilizando impropérios
agarram no casaco e saem para a selva

m.f.s.

Escrito

o meu amigo azul-escuro tem olhos cor de luar
as orelhas são obtusas
os dentes em coração

as mãos agarram colares
pescados da boca das dóceis baleias

é de água feito o meu amigo azul-escuro


m.f.s.

quarta-feira, outubro 25, 2006

Escrito

porque os caminhos estão recuados no mapa
as horas não soam nos campanários
aqui estou numa paisagem sem ídolos
sem neblinas entre as árvores

mas com árvores ao menos
povoadas de véus sombreados
de ouros recolhidos nos oceanos
de hipóteses em estantes

aqui estou

não visível talvez não detectável
pelos radares dos olhos insectívoros
vogando num mar sem corpo

aqui estou (suponho)

m.f.s.

quinta-feira, setembro 28, 2006

agonizo nesta nuvem de sois moribundos
a leste de nenhum paraíso
roendo as cordas da traição mortífera

meu coração duplo de mim

acordam as vozes os suspiros
relutantes das vítimas enclausuradas
nos braços dos carrascos enamorados

meu coração de arma ao peito

seguem-se os passos relutantes
dos candidatos à morte prematura
nas telas de vidro fosco

meu coração que se esbate

corro no horizonte dos felinos
salto na espuma das ondas amortecidas
visto a pele do lobo domesticado

m.f.s.


no meio espaço entre o sim e o não
violentos confrontos fazem cair o céu sobre as cidades
roubam rochas à lua que fica mais leve
a nos abandona

rapinam-se as cores com que os cegos
pintam as formas dos seus androides do costume
a turbulência das rosas em explosão
espalha perfumes como uma lata de spray
nos labirintos formigueiros

as alegres ratazanas dos charcos agoirentos
desenham mais um anel nas caudas peladas e flexíveis
cheiram afanosamente os detritos
põem mais um fulgor nos brilhantes olhos

as tranças das meninas violetas desfazem-se
em rios de auroras boreais

m.f.s.


a sombra
a sombra
o lusco-fusco
a silhueta

as planuras
as planuras
secas
amarelas

as linhas
os rasgões
a plenitude
o vazio

o branco
o grito
o gesto
o gesto

o eu
o tu
o nós
o vós

o eles
o eu
a luz
o túnel

a luz

m.f.s.


preciso de roma
de atenas
de tebas

os antigos deuses
abandoram-nos
levaram com eles
as velhas magias

ficámos órfãos do
maravilhoso
dos rituais misteriosos
das velhas crueldades

preciso de jerusalém
do fogoso david de
cabelos vermelhos
dançarino e tocador

guerreiro e
arranca-corações
amigo e traidor

faz-me falta gudea
e a sua túnica portadora
de história
hamurabi e o seu
olho por olho
assim como fizeres
assim terás

daniel ainda dialoga
com os leões
ainda se senta à entrada
da cidade

ainda nubla o futuro de
negras tintas
números estranhos
salvações impossíveis

penso em caim
torturado pelo ciúme
ganancioso na sua dor
de filho na margem

os deuses voltarão
de novo armados
de novo guerreiros
carrascos
das suas crias

m.f.s.

canção do soldado

a perfeita canção do soldado arma-se nos olhos dos escondidos
daqueles que cegam à luz do meio-dia

a perfeita canção do soldado soa a marchas de botas apertadas
enche-se de alegre patriotismo

a perfeita canção do soldado faz cair os pés de barro
dos ídolos instalados nos gabinetes

a perfeita canção do soldado soa a marcha fúnebre
com botas brilhantes e apertadas

m.f.s.

terça-feira, setembro 05, 2006

Novo bloco

não sabemos que vertigens nos esperam
atrás das portas fechadas das casas encantadas

sabemos que as imagens dansam como violentos
vendavais

a excelência das transparências nas
janelas dos arranha-céus
o reflexo das luzes dos néons
publicitários

os mundos pressentidos nas ruas
vielas
becos
auto-estradas
sem vigilância

isso sabemos


m.f.s.



de que sorriem as noites claras de janeiro
de cintilante frio nos céus de lua plena

de que se queixam as noites de agosto
rasgadas pelas trajectórias
de suicidas meteoritos

de que nos lembramos quando olhamos
as nossas veias

m.f.s.



correm os cavaleiros pelas estepes
levam a tiracolo os corações roubados
em noites de trovas e fingimento

exibem nas suas armaduras os cabelos cortados
às damas que por eles se diluiram
em lágrimas tépidas
inúteis
sem retorno

m.f.s.


longas caminhadas nos esperam
longe do útero materno
à saida dos corredores abismais
onde a nossa alma permanece
todavia

não se levantam as gaivotas à nossa passagem
fugaz caminhar sem sombra sem cor
sem luz
sem eco

sem sandálias percorremos a Via �pia
não podemos perguntar "Quo vadis"
sem o dom da palavra transformada
sem o som dos clarins dos mundos
em espirais de contentamento

não há descanso na busca


m.f.s.



a realidade que nos tolhe os passos a cada manhã
que nos acorda dos oníricos pensamentos
que nos massacra nas imagens a preto e cinzento
que nos engole como voraz Pantagruel

as sementes que germinam vertiginosamente
nos campos áridos das planícies do sul
as résteas de aragens perfumadas de
estrelas em implosão

os vácuos que se digladiam como touros e toureiros
na decrépita arena dos tempos em caótica dança
mãos que se prendem ao rebordo do invisível
e deixam cair as luzes dos horizontes
nos abismos

a certeza que nos prende
desenhada nas páginas
vazias do infinito

m.f.s.