o velho pintor aparece na galeria
espanta-se de me ver lá
está de preto roupa escangalhada
comprou-me a prensa que já não tenho muita paciência
e precisava de dinheiro
canta às noites num bar e agora entrou a fazer de anjo numa peça de teatro
não pára
mas a gravura e a pintura vão sendo mais ou menos adiadas
convida-nos para um "evento" - hum - para o dia 20
quer fazer gravura aditiva
pede explicações mais tarde por telefone
mudou de casa mas não de bairro
renda cara em andar alto
sem escadas mas com uma esplêndida vista para o tejo
à noite delicia-se a ver o rio ainda mais belo quando há lua no céu
ficará lá enquanto tiver dinheiro
depois irá não sabe para onde
sophia de mello breyner andresen / às vezes
-
Às vezes julgo ver nos meus olhos
A promessa de outros seres
Que eu podia ter sido,
Se a vida tivesse sido outra.
Mas dessa fabulosa descoberta
Só me...
Há 10 horas
4 comentários:
Retrato de família sem rede.
Mas gosto de pensar em Neruda, aos ombros do seu povo, que o levou a enterrar a pé e que encheu as ruas de Santiago declamando e gritando os seus poemas nas barbas do recém-vitorioso Pinochet.
E gosto de lembrar Mercedes Sosa que mereceu à Presidente da Argentina que interrompesse uma viagem de Estado porque Mercedes estava morrendo e precisava estar com o seu povo.
ok, ok e?
Não consigo ver a ligação com o pintor-cantor que me comprou a prensa.
O seu poema é um «retrato de família» dos artistas/cientistas que vivem «sem rede», sem segurança material, rumo a um futuro densamente incógnito. Um futuro [A ver vamos,] a que a sabedoria popular acrescenta muito irónica: [...como diz o cego!]
Sabendo disto, acrescento que prefiro pensar em casos mais «alegres» como o de Neruda e Mercedes particularmente amados, contra tudo e contra todos, pelos seus povos.
E que outro ânimo poderei encontrar?
Pois, samartaime, mas eu não escrevo poemas. Quando muito faço uns escritos bizarros de vez em quando. Mas neste caso estava a descrever o que de facto aconteceu.
Gostei do "sem rede". Creio que a vida dele é assim mesmo: no fio da navalha, no arame. Com aquela pronúncia algarvia, olhando-nos um pouco de soslaio, as barbas e cabelos compridos, óculos a sublinhar as veredas sinuosas que se lhe desenham na testa.
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