quarta-feira, dezembro 30, 2009

Praia e Morte

Para lá, virámos a NE na bifurcação.
A caligrafia era agreste: montanhas de terra
que secara até ser pedra e pó no ar uivante;
inverosímeis montanhas escritas
por uma tinta baça e rala, as acácias breves
já encurvadas pelo Cão do Vento.
As letras do verde ardiam sob a cinza
que é a das casas, e cintilavam o ouro mínimo
como se fossem riscos no olhar que
as claras cabras negras escreviam.
Na estrada, por entre as casas, subindo os montes
as jovens gentes olhavam-nos límpidas
e éramos por isso humanos: eles, nós
criaturas incriadas, abertas ao pequeno espanto
feliz, à alegria distraída da vida viva.


Íamos ao encontro de duas paisagens
que a estrada liga e dobra uma sobre a outra.
A segunda era a curta beleza de uma enseada
com palmeiras; uma praia branca
aberta contra a montanha terrosa:
o mar doméstico e os barcos do ócio.


Para cá, pelo oriente da ilha, uma larga curva
atirou-nos contra a alta figura do mar
que do céu se despenhava. Uma,
várias vezes o perdemos e o reencontrámos.
Rasgava, entre os ombros dos sucessivos corpos
da terra que se deita, pequenas baías negras
pontes sobre rios já nenhum, e a seguir
súbitos palmares ainda verdes e já o ouro
envelhecido, debotado, pobre.
E eram de novo as casas, as casas cinza
inúmeras: do piso térreo erguem-se os cabos
que no ar escrevem em vão o piso ausente.
Os artífices, os habitantes emigram
para longes terras ou habitam resistentes
as casas
incompletas.


Foras ao encontro de duas paisagens
que a mesma estrada separa e dobra
uma
sobre a outra. Esta, a primeira
aquela que agora outra vez
regressa
era uma ferida mortal que degenerou ainda.
O tempo dos assassinos gravou-a na terra
estancada, bebida até ao osso dos dentes.
É uma ferida mortal que degenerou para além
do assassínio. Parece que tudo em volta
infectou:
as mães gastas e as crianças estridentes.
O mundo cicatriza nas árvores embranquecidas
de velhas:
uma simetria sem folhas, uma sequer.
Cicatriza nas portas de ferro, no ferrolho
nas grades inúteis contra o silêncio
e a sombra morta das celas, nas ondas paradas
e estéreis dos telhados de cimento e zinco;
no calor, no vento e na poeira. Cicatriza
na carcaça de uma máquina abandonada
roída como as ossadas de um animal
aquecido até àquele negro branco que a vida
abandonou para pasto do monstruoso
sol.


Manuel Gusmão
































































Relâmpago nº5






















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